Um dos maiores épicos da HQ mundial
Segundo o escritor Kazuo Koike,a inspiração para criar Lobo Solitário surgiu quando ele leu que o clã Ogami, que detinha o posto de Kogi Kaishakunin (oficial da morte, executor) do Xogum caiu em desgraça em 1655, com a família Yagyu (tradicional aliada do Xogunato Tokugawa) assumindo para si o posto. Baseado nisso, o autor criou a história dos últimos sobreviventes da família Ogami, pai e filho - vítimas de uma conspiração dos Yagyu, que decidiram tomar para si próprios o posto de executores oficiais - e decididos a se vingar superando os Yagyu naquilo que o clã fazia de melhor: assassinatos! Como principal vilão, uma figura histórica menor, Retsudo Yagyu, um dos membros menos conhecidos da famosa família de samurais (historicamente, um simples monge budista). Para fazer a arte da série, Koike chamou Goseki Kojima, que até então era um autor relativamente novato e desconhecido que já trabalhara com Koike em um bem sucedido mangá de samurai, Kubiriki Asa (Decapitador Asa), e tinha demonstrado talento para este gênero. Assim, em setembro de 1970 a antologia de mangá semanal japonesa Action começou a publicar um novo mangá de samurai chamado Kozue Ookami (numa tradução literal, "o lobo acompanhado de seu filhote") em substituição a Kubikiri Asa. Os dois trabalhos eram, porém, bem diferentes em seu conteúdo. O herói de "Asa", Asaemon, era um fiel servidor do Xogum e irrepreensível seguidor do código de honra samurai (o Bushido), um verdadeiro modelo de "herói clássico" japonês, apesar de sua profissão de carrasco. Enquanto isso, o principal protagonista de Lobo Solitário à primeira vista só poderia ser classificado como um assassino frio e impiedoso, capaz de fazer qualquer coisa (honrada ou não) para conseguir seu objetivo, embora fosse dono de uma nobreza interior claramente visível para aqueles que acompanhassem o desenrolar de suas histórias. Ironicamente, o personagem era antes dos acontecimentos que o levaram a seguir a trilha do assassino, um nobre e fiel executor a serviço do Xogum, tal como seu predecessor nas HQs.
Mais importante, ao contrário de "Asa" (e da inconsistente tradução de seu título para o português, o "Lobo Solitário" não era solitário, ele tinha um importante co-protagonista: Daigoro, seu filho. Não apenas uma testemunha muda dos crimes de seu pai. Daigoro era cúmplice e ajudante deste. A inspirada inclusão da criança no mangá fez deste um trabalho verdadeiramente revolucionário. A dualidade do personagem, ora uma criança inocente em um mundo violento, ora um assassino calejado (verdadeiro "lobo em pele de cordeiro", por assim dizer), deu a Lobo Solitário uma sofisticação que os trabalho anteriores de seus criadores não poderiam igualar e é uma das principais razões do sucesso da obra tanto no Japão quanto no ocidente. A outra é, sem dúvida, a impecável arte de Kojima. Embora na altura ainda fosse um artista novo (seu primeiro trabalho foi publicado em 1967), ele revela uma surpreendente maturidade artística no mangá. Seu realismo e atenção a detalhes já eram visíveis em suas obras anteriores, mas em Lobo Solitário ele foi, tal qual uma boa espada samurai, forjado até a perfeição. Além disso, ele demonstrou uma narrativa impecável - quase cinematográfica. Vale a pena destacar que, quando de sua primeira publicação nos EUA décadas depois, seus desenhos impressionaram toda uma geração de artistas ocidentais, como Frank Miller que tem pelo menos uma obra nitidamente inspirada no Lobo Solitário chamada Ronin. A sombra que esta obra lançou sobre os trabalhos anteriores de seus criadores é bastante visível quando Asaemon acaba como um coadjuvante de Lobo Solitário. Fica claro nesse ponto que os criadores estavam rompendo com o passado e fazendo de Lobo Solitário sua mais importante criação. E não foi à toa. A obra fez um tremendo sucesso quando de sua publicação original. Gerou até uma série de filmes para o cinema, lançados enquanto o mangá ainda estava sendo publicado.
No final, a história se estendeu por cerca de 8400 páginas (número deveras impressionante, comparável ao total de páginas do mangá que é considerado o maior sucesso comercial da história dos quadrinhos: Dragonball), contando (diferente de muitos mangás) com um bem-estruturado desenvolvimento até chegar ao clímax e um desfecho irrepreensíveis.
Claramente, a série foi encerrada não por falta de vendas (eterna inimiga das HQs mais sofisticadas) ou por cansaço dos autores (causa da morte da grande maioria dos mangás de sucesso), mas por escolha dos próprios criadores. Mas o que levou Koike e Kojima a matarem sua "galinha dos ovos de ouro"?
O próprio Koike deu a resposta em uma entrevista para uma publicação especializada norte-americana anos atrás. Segundo eles, mostrar a passagem das estações do ano no mangá, acompanhando a passagem destas durante a publicação original da obra, era algo que ele não só gostava de fazer, como achava essencial para o clima da história. Após alguns anos, porém, Koike percebeu que o passar das estações iria necessariamente resultar no envelhecimento de Daigoro. Koike não queria que ele envelhecesse e perdesse sua pureza infantil, característica essencial do personagem, e resolveu deixar de monstrar a passagem das estações. Isso fez com que o escritor gradualmente fosse perdendo o interesse em continuar a série e decidisse por encerrá-la após criar um longo arco onde fechou todas as tramas em aberto. Isso fez de Lobo Solitário uma obra completa, com início, meio e fim, que se tornou um dos grandes épicos da HQ mundial.
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