A trezentas milhas ou
mais do Chimborazo, e a cem milhas das neves do Cotopaxi, nas regiões mais
selvagens dos Andes equatoriais, ali fica esse misterioso vale entre as
montanhas, separado do mundo dos seres humanos, a Terra dos Cegos. Há muitos
anos esse vale estava tão aberto ao mundo, de modo que os seres humanos podiam
ali chegar afinal, através de medonhos desfiladeiros e por sobre um passo gelado,
dentro de suas pradarias amenas; e lá realmente chegaram seres humanos, uma
família ou pouco mais de mestiços peruanos, fugindo da cobiça e da tirania de um
malvado governante espanhol. Então houve a estupenda erupção do Mindobamba,
quando a noite durou dezessete dias em Quito, a água ficou fervendo em Yaguachi
e todos os peixes mortos chegavam flutuando até mesmo a Guaiaquil; por toda
parte, ao longo das encostas do Pacífico, houve deslizamentos de terra, rápidos
degelos e inundações súbitas, e todo um lado da velha crista do Arauca se desprendeu
e veio abaixo em meio a um ruído como trovões, e a erupção separou para sempre
a Terra dos Cegos dos passos exploradores dos seres humanos. Mas
aconteceu de um
desses colonizadores iniciais estar do lado de cá dos desfiladeiros quando o
mundo tremeu tão terrivelmente, e por força ele teve de esquecer sua mulher e
filho, todos os amigos e posses que tinha deixado lá em cima, e teve de começar
de novo no mundo mais abaixo. Ele começou de novo, mas a cegueira o afetou, e
ele morreu dos castigos nas minas; mas a história que contou fez nascer uma
lenda que paira ao longo de todas as cordilheiras dos Andes até hoje. Ele falou
da sua razão para se aventurar naquele lugar protegido, em que ele tinha sido
inicialmente levado amarrado a uma lhama, junto a uma vasta carga de instrumentos,
quando era criança. O vale, disse ele, tinha tudo que o coração humano podia
desejar — água doce, pastos, clima ameno, encostas de rico solo marrom com
manchas de um arbusto que dava um fruto excelente, e de um lado grandes
florestas pendentes de pinheiros que seguravam as avalanches. Longe, bem longe,
de três lados, imensas cavernas de rocha verde-acinzentada eram revestidas de
paredes de gelo; mas a geleira não vinha na direção dos habitantes, porém fluía
para longe através das encostas mais afastadas, e só de vez em quando
grandes massas de
gelo caíam do lado do vale. Nesse vale nem chovia, nem
nevava, mas as fontes
abundantes proporcionavam uma rica pastagem verde, que a irrigação espalhava
por todo o espaço do vale. Os colonizadores haviam feito um bom trabalho
naquele lugar. Seus animais viviam bem e se multiplicaram, e havia uma só coisa
que toldava a sua felicidade. E no entanto, bastava para toldá-la sobremaneira.
Uma estranha doença os atingiu, fazendo que não só todas as crianças nascidas
ali — e, na verdade, várias crianças mais velhas também — fossem atacadas pela
cegueira. Foi para buscar algum encantamento ou antídoto contra essa praga da
cegueira que ele tinha, com grande esforço, perigo e dificuldade, voltado atrás
pelo desfiladeiro. Naqueles dias, nesses casos, os seres humanos não pensavam
em germes e infecções, mas em pecados; e parece para ele que a razão dessa
aflição devia residir na negligência desses imigrantes sem sacerdotes, que
deixaram de erguer um templo assim que entraram no vale. Ele queria que um templo
— bonito, barato, efetivo — fosse erguido no vale; queria relíquias e coisas
assim, e todos aqueles poderosos símbolos da fé, objetos abençoados, medalhas
misteriosas e rezas. Na sua bolsa tinha uma barra de prata cuja origem ele não
se dispunha a revelar; insistia, com algo da insistência do mentiroso inábil,
em que não havia prata nenhuma no vale. Eles tinham todos juntado seu dinheiro
e ornamentos, disse ele, para comprar a ajuda divina contra seu mal, já que lá
em cima tinham pouca necessidade desse tesouro. Imagino esse jovem montanhês de
olhos fracos, queimado de sol, magro e ansioso, febril, segurando febrilmente a
aba do chapéu, um homem totalmente desacostumado aos modos do mundo mais
embaixo, contando essa história a algum sacerdote de olhos agudos, atencioso,
antes da grande convulsão; posso vê-lo depois tentar voltar com remédios pios e
infalíveis contra aquela perturbação, e a decepção infinita com que ele deve
ter se defrontado com a imensidão despencada onde antes havia o desfiladeiro.
Mas o resto de sua história de azares está perdido para mim, exceto que sei de
sua infeliz morte após vários anos. Pobre homem perdido daquela região remota!
O curso d'água que antes formava o desfiladeiro agora sai estrepitosamente da
boca de uma caverna rochosa, e a lenda desencadeada por sua história infeliz e mal
contada se desenvolveu numa história sobre uma raça de seres humanos cegos vivendo
em algum lugar "para lá das montanhas", a qual ainda se pode ouvir
hoje. E em meio à pequena população daquele vale agora isolado e esquecido, a
doença seguiu seu curso. Os velhos se tornaram tateantes e parcialmente cegos,
os jovens viam apenas enevoadamente, e as crianças que nasceram deles nunca
enxergaram nada. Mas a vida era muito fácil naquela bacia rodeada de neve, sem
espinheiros ou eglantinas, sem insetos nocivos nem outro animal, exceto a raça
mansa de lhamas que eles tinham carregado e levado e que subiram os leitos dos
rios estreitados nos desfiladeiros sobre os quais tinham chegado. Os que viam
tinham se tornado parcialmente cegos tão gradativamente que mal notaram sua
perda de visão. Eles guiaram os jovens sem visão aqui e ali, até que estes
conhecessem maravilhosamente bem todo o vale, e quando, no fim, a visão morreu
entre eles, a raça sobreviveu. Tiveram até tempo para se adaptarem ao controle
do fogo, que acendiam cuidadosamente em fogões de pedra. Eram um tipo simples
de gente no começo, analfabetos, só ligeiramente tocados pela civilização
espanhola, mas com algo da tradição das artes do velho Peru e de sua filosofia
perdida. As gerações se seguiram. Esqueceram muitas coisas; descobriram outras.
Sua tradição do mundo mais amplo de que tinham vindo adquiriu um acento
incerto. Em todas as coisas, salvo na visão, eles eram fortes e hábeis, e
depois o acaso do nascimento e da herança fazia nascer entre eles alguém que
tinha uma mente original e que podia falar e persuadi-los, e logo depois surgia
outro. Esses dois morreram, deixando seu legado, e a pequena comunidade cresceu
em número e em conhecimento, e enfrentou e resolveu problemas sociais e
econômicos que surgiram. As gerações se seguiram umas às outras. Chegou uma
hora em que nasceu uma criança que estava a quinze gerações daquele ancestral
que saíra do vale com uma barra de prata para buscar a ajuda de Deus, e que
nunca voltara. Por volta dessa época aconteceu que um homem veio do mundo
externo para essa comunidade. E esta é a história desse homem. Era um montanhês
da região perto de Quito, um homem que descera até o mar e tinha visto o mundo,
um leitor de livros numa maneira original, um homem de inteligência aguda e
empreendedor, e fora contratado por uma equipe de ingleses que tinha vindo ao
Equador para escalar montanhas, para substituir um de seus três guias suíços
que ficara doente. Escalaram aqui, escalaram acolá, e então veio a tentativa no
Parascotopetl, o Matterhorn dos Andes, em que esse homem se perdeu para o mundo
externo. A história do acidente foi escrita uma dezena de vezes. A narrativa de
Pointer é a melhor. Ele conta como a pequena equipe lutou para subir o caminho
difícil e quase vertical até o sopé do último e maior precipício, e como construíram
um abrigo noturno em meio à neve numa pequena reentrância da rocha, com um
toque de poder dramático real, como depois descobriram que Núñez tinha ido
embora. Gritaram, e não houve resposta; gritaram e assobiaram e, pelo restante daquela
noite, não dormiram mais. Quando amanheceu, viram os traços de sua queda.
Parece impossível que esta tenha podido ocorrer sem que nenhum som tivesse sido
emitido. Escorregara para leste, rumo ao lado desconhecido da montanha; muito
abaixo tinha se chocado com uma aguda protuberância de gelo, e continuado a
cair em meio a uma avalancha de neve. Sua pista ia direta à beira de um precipício
medonho, e, para lá disso, tudo estava escondido. Muito, muito lá embaixo, e
enevoadas pela distância, eles podiam ver as árvores subindo de um vale
estreito, fechado — a perdida Terra dos Cegos. Mas não puderam saber que era a
Terra dos Cegos, nem distingui-la de modo nenhum de qualquer outro trecho
estreito de vale lá em cima. Nervosos com esse desastre, abandonaram sua
tentativa à tarde, e Pointer foi convocado para a guerra antes que pudesse
empreender uma nova escalada. Até hoje o Parascotopetl se ergue numa crista
inconquistada, e o abrigo de Pointer está se arruinando entre as neves, sem que
ninguém tenha voltado a visitá-lo.
E o homem que caiu
sobreviveu.
No fim da encosta ele
caiu mil pés, e caiu no meio de uma nuvem de gelo sobre uma encosta de neve
ainda mais escarpada do que a de cima. Descendo, ele girou, bateu o corpo e
ficou insensível, mas sem um único osso quebrado. E no fim veio a dar em
encostas mais suaves, e finalmente parou de rolar e ficou imóvel, enterrado em
meio a um monte macio das massas brancas que o tinham acompanhado e salvado.
Voltou a si com uma tênue idéia de que estava doente, de cama; então percebeu
sua posição com a inteligência de um montanhista, e se livrou da neve, e, depois
de um descanso, andou até que viu as estrelas. Descansou deitado sobre o peito
por um tempo, imaginando onde estava e o que lhe tinha acontecido.
Examinou seus membros
e descobriu que vários botões tinham desaparecido, e que o casaco estava em
volta de sua cabeça. A faca tinha sumido do bolso e o chapéu tinha se perdido,
embora ele o tivesse amarrado sob o queixo. Lembrou que estivera procurando
pedras soltas para erguer seu trecho da parede do abrigo quando escorregara.
Sua machadinha de gelo tinha desaparecido.
Chegou à conclusão de
que devia ter caído, e olhou para cima para ver, exagerada pela luz
fantasmagórica da lua nascente, a tremenda queda que tinha sofrido. Por um
momento, permaneceu olhando vaziamente para aquela vasta parede de rocha pálida
que culminava lá em cima, surgindo de momento a momento de uma maré rasante de
escuridão. A beleza fantasmagórica, misteriosa, o manteve parado por um tempo,
e então ele foi tomado de um paroxismo de riso soluçante...
Depois de um grande
intervalo, ele se tornou consciente de que estava perto da beira mais baixa da
neve. Abaixo, sob o que era agora uma encosta enluarada e praticável, ele viu a
aparição escura e interrompida de grama entre as rochas. Lutou para se
levantar, com todas as articulações e membros doloridos, livrou-se com dificuldade
da neve solta amontoada em torno dele, rumou para baixo até que chegou à grama
e ali caiu, mais do que deitou, ao lado de uma pedra, bebeu profundamente do
cantil em seu bolso interno e, instantaneamente, caiu no sono...
Foi acordado pelo
cantar dos pássaros nas árvores bem lá embaixo. Achou-se num pequeno monte ao
pé de um vasto precipício, e percebeu que estava com ranhuras causadas pela
descida que ele e a neve tinham sofrido. Acima, em frente dele, outra parede de
rocha se erguia contra o céu. O desfiladeiro entre esses precipícios ia para o
leste e para o oeste e estava cheio da luz do sol matinal, que iluminava rumo ao
oeste a massa de montanha caída que tinha fechado o desfiladeiro em descida.
Rumo abaixo parecia
haver um precipício igualmente agudo, mas, atrás da neve no canal da geleira,
achou uma espécie de canaleta gotejante com água de neve, pela qual um homem
desesperado podia aventurar-se. Descobriu que isso era mais fácil do que
parecia, e chegou afinal a outro monte desolado, e então depois de uma escalada
na rocha sem nenhuma dificuldade particular, a uma aguda encosta de árvores.
Aprumou-se e voltou o rosto para cima do desfiladeiro, pois viu que este se abria
lá em cima para prados verdes, entre os quais ele vislumbrou bastante distintamente
um grupo de cabanas de pedra de construção não familiar. Às vezes o seu
progresso era como escalar ao longo da face de uma parede, e depois de um tempo
o sol nascente parou de brilhar sobre o desfiladeiro, as vozes dos pássaros morreram
ao longe, e o ar se tornou frio e escuro em torno dele. Mas o vale distante, com
suas casas, era por isso mesmo cada vez mais brilhante. Chegou depois ao talude,
e entre as rochas notou — pois era um homem observador — uma samambaia não familiar
que parecia sair das reentrâncias com mãos intensamente verdes. Pegou uma ou
duas folhas, mastigou a espiga da nervura e a achou comestível. Por volta do
meio-dia saiu afinal da garganta do desfiladeiro para o planalto e a luz do
sol. Estava cansado e com os membros rígidos; sentou à sombra de uma rocha, encheu
seu cantil com água de uma fonte e bebeu, e ficou descansando um tempo antes de
seguir rumo às casas.
Elas pareceram muito
estranhas para seus olhos e, na verdade, todo o aspecto
daquele vale se
tornou, à medida que o olhava, mais estranho e menos familiar. A maior parte de
sua superfície era de luxuriante prado verde, manchado por muitas flores
bonitas, irrigado com cuidado extraordinário; e exibindo indicações de colheita
sistemática peça por peça. Bem alto e cercando o vale havia um muro, e o que parecia
ser um canal circular, do qual vinham os filetes d'água que alimentavam as plantas
da pradaria, e nas encostas mais altas, acima do canal, rebanhos de lhamas comiam
o ralo pasto. Cercados, aparentemente abrigos ou manjedouras para as lhamas, se
erguiam contra o muro fronteiriço aqui e ali. As correntes de irrigação corriam
até se juntarem num canal principal rumo ao centro do vale, abaixo, e esse canal
era cercado de cada lado por um muro à altura do peito. Isso dava uma estranha
qualidade urbana a esse lugar recluso, qualidade grandemente realçada pelo fato
de que vários caminhos, pavimentados com pedras brancas e pretas, e cada um com
uma curiosa pequena curva em cada esquina, iam para lá e para cá de modo
ordenado. As casas da aldeia central eram bem diferentes da aglomeração casual
e amontoada das aldeias montanhesas que ele conhecia; as casas ficavam numa
fileira contínua de cada lado de uma rua central surpreendentemente limpa; aqui
e ali, sua fachada multicolorida era perfurada por uma porta, e nem uma única janela
quebrava sua frontaria harmoniosa. Eram multicoloridas com extraordinária irregularidade,
manchadas com um tipo de cimento que era às vezes cinza, às vezes pardo, às
vezes cor de ardósia ou marrom-escuro; e foi a visão desse colorido selvagem
que trouxe primeiro a palavra "cego" aos pensamentos do explorador.
"O bom homem que fez isso", pensou, "deve ter sido tão cego
quanto um morcego."
Ele desceu um trecho
agudo, e assim chegou ao muro e ao canal que corriam em torno do vale, perto de
onde o último despejava seu excesso nas profundezas do desfiladeiro num fio
fino e ondulante de cascata. Agora ele podia ver alguns homens e mulheres
descansando em montes empilhados de grama, como se estivessem gozando de uma
sesta, na parte mais remota do prado, e perto da aldeia algumas crianças
deitadas, e então, mais perto, três homens carregando baldes em armações presas
aos ombros, ao longo de um pequeno caminho que levava do muro circundante rumo
às casas. Esses três homens vestiam trajes de lã de lhama e tinham botas e
cintos de couro e usavam chapéus de lã com aba traseira e protetores de
ouvidos. Seguiam um ao outro como se fosse uma fila, andando devagar e
bocejando enquanto andavam, como se fossem homens que tivessem ficado acordados
a noite inteira. Havia algo tão reconfortante de prosperidade e respeitabilidade
em seu comportamento que, depois de hesitar um momento, Núñez se ergueu para a
frente tão visivelmente quanto possível, por cima da rocha, e deu um grande
grito que ecoou em torno do vale.
Os três homens
pararam e moveram as cabeças como se estivessem olhando em torno deles. Viraram
o rosto para lá e para cá, e Núnez gesticulou largamente. Mas eles não
pareceram vê-lo, apesar de todos os seus gestos, e, depois de um tempo, dirigindo-se
para as montanhas longínquas à direita, eles gritaram como em resposta. Núnez
berrou de novo, e enquanto gesticulava de novo sem resultado, a palavra
"cego" surgiu bem clara em seus pensamentos. "Esses loucos devem
ser cegos", disse.
Quando, no fim,
depois de muita gritaria e ira, Núnez atravessou o curso d'água por sobre uma
pequena ponte, passou por um portão no muro e se aproximou deles, teve certeza
de que eles eram cegos. Estava convencido de que essa era a Terra dos Cegos da
qual falavam as lendas. A convicção havia se apossado dele, assim como um
sentido de grande e na verdade invejável aventura. Os três estavam parados um
ao lado do outro, não olhando para ele, mas dirigindo os ouvidos para ele,
avaliando-o por seus passos não familiares. Eles se mantinham bem perto um do
outro, como homens um tanto amedrontados, e ele podia ver suas pálpebras fechadas
e afundadas, como se os próprios globos oculares ali embaixo tivessem afundado.
Havia uma expressão próxima do pavor em seus rostos.
"Um homem",
disse um deles, em espanhol mal reconhecível, "é um homem — um homem ou um
espírito — descendo das rochas."
Mas Núnez avançou com
os passos confiantes de um jovem que está começando a vida. Todas as antigas
histórias do vale perdido e da Terra dos Cegos voltaram à sua mente, e em meio
a seus pensamentos passava esse velho provérbio, como se fosse um refrão:
"Em terra de
cego, quem tem um olho é rei."
"Em terra de
cego, quem tem um olho é rei."
E muito cortesmente
os cumprimentou. Falou a eles utilizando os olhos.
"De onde ele
vem, irmão Pedro?", perguntou um deles.
"Desceu das
rochas."
"Venho do alto
das montanhas", disse Núñez, "fora deste lugar aqui — onde os
homens podem ver. De
perto de Bogotá, onde há cem mil pessoas e não se vê o fim da cidade."
"Não se
vê?", murmurou Pedro. "Não se vê?"
"Ele vem",
disse o segundo cego, "de para lá das rochas."
O tecido de seus
casacos, viu Núnez, era modelado curiosamente, cada um com um tipo diferente de
costura.
Eles o assustaram com
um movimento simultâneo rumo ao seu encontro, cada um com uma mão estendida.
Ele recuou diante do avanço desses dedos abertos.
"Venha cá",
disse o terceiro cego, seguindo o movimento de Núnez e o agarrando.
E eles seguraram
Núñez e o apalparam, não dizendo nenhuma palavra mais
enquanto não
terminaram.
"Cuidado",
disse ele, sentindo um dedo no olho, e descobriu que eles achavam esse órgão
uma coisa esquisita nele, com suas pálpebras piscantes. Eles repetiram o apalpamento.
"Uma criatura
estranha, Correa", disse o de nome Pedro. "Sinta a dureza de seus cabelos.
Como o pêlo de uma lhama."
"Ele é áspero
como as rochas que o pariram", disse Correa, investigando o queixo não
barbeado de Núñez e sua mão ligeiramente úmida. "Talvez se torne menos áspero."
Núñez lutou um pouco enquanto era examinado, mas eles o seguraram firmemente.
"Cuidado",
disse de novo.
"Ele fala",
disse o terceiro homem. "Certamente é um homem."
"Ugh!",
disse Pedro, ao experimentar a aspereza do casaco de Núñez.
"E você veio
para o mundo?", perguntou Pedro.
"Saí do mundo.
Por montanhas e geleiras; logo ali acima, a meio caminho do sol.
Saí do grande, do
enorme mundo que desce, em doze dias de jornada, rumo ao mar."
Eles pareciam lhe
prestar pouca atenção. "Nossos pais nos disseram que os
homens podem ser
feitos pelas forças da natureza", disse Correa. "É o calor das coisas
e a umidade, e a podridão — podridão."
"Vamos levá-lo
aos anciãos", disse Pedro.
"Grite
antes", disse Correa, "para que as crianças não tenham medo. Esta é
uma ocasião importante."
Então eles gritaram,
e Pedro foi na frente e tomou Núñez pela mão, para levá-lo às casas.
Núñez afastou a mão.
"Posso ver", disse.
"Ver?",
disse Correa.
"Ver",
disse Núnez, voltando-se para ele, e tropeçou no balde de Pedro.
"Os sentidos
dele ainda são imperfeitos", disse o terceiro cego. "Tropeça e fala palavras
sem sentido. Levem-no pela mão."
"Como vocês
quiserem", disse Núñez, e foi conduzido pela mão, rindo.
Parecia que eles não
sabiam de nada sobre a visão.
Bem, com o tempo ele
os ensinaria.
Ouviu pessoas
gritando, e viu algumas figuras se reunindo no caminho do meio da aldeia.
Achou que aquilo o
enervou e impacientou mais do que tinha esperado, aquele
primeiro encontro com
a população da Terra dos Cegos. O lugar parecia maior, à medida que se
aproximava dele, e as cores manchadas mais esquisitas, e uma multidão de
crianças, homens e mulheres (as mulheres e as garotas, notou com agrado, tinham
algumas delas rostos bastante bonitos, apesar de seus olhos estarem fechados e
afundados) chegou junto dele, segurando-o, tocando-o com mãos suaves e
sensíveis, cheirando-o e ouvindo cada palavra que ele dizia. Algumas das garotas
e das crianças, entretanto, se mantinham longe, como se tivessem medo, e realmente
sua voz parecia mais áspera e rude em relação aos tons deles, mais suaves. Eles
o cercaram. Seus três guias se mantiveram perto dele, com um ar de propriedade,
e diziam e repetiam: "Um homem selvagem que veio das rochas".
"De
Bogotá", disse Núnez. "De Bogotá. Para lá das cristas das
montanhas."
"Um homem
selvagem — falando palavras selvagens", disse Pedro. "Vocês ouviram isso
— Bogotá? Sua mente ainda não está formada. Ele tem apenas os começos da fala."
Um garotinho
acariciou a mão de Núnez. "Bogotá", disse, debochando.
"Ai! Uma cidade,
comparada à sua aldeia. Venho do grande mundo — onde os
homens têm olhos e
vêem."
"O nome dele é
Bogotá", disseram.
"Tropeçou",
disse Correa, "tropeçou duas vezes enquanto chegávamos aqui."
"Levem-no para
os anciãos."
E eles o empurraram
subitamente porta adentro, numa sala tão escura quanto piche, a não ser no
outro extremo, onde brilhava fracamente uma pequena fogueira. A multidão fechou
o caminho atrás dele e bloqueou quase completamente a luz do dia e, antes que
ele pudesse se deter, tinha caído de cabeça aos pés de um homem sentado. Seu
braço, estendido, bateu no rosto de alguém enquanto caía; ele sentiu o macio
toque na face e ouviu um grito de raiva, e por um momento lutou contra várias mãos
que o agarraram. Era uma luta desigual. Ele se deu conta da situação e ficou quieto.
"Caí",
disse. "Não pude ver nesta escuridão profunda."
Houve uma pausa, como
se as pessoas não vistas em torno dele tentassem
entender suas
palavras. Então a voz de Correa disse: "Ele acaba de ser criado.
Tropeça quando anda e
mistura palavras que não querem dizer nada quando fala".
Outros também
disseram coisas que ele mal ouviu ou entendeu imperfeitamente.
"Posso me
levantar?", perguntou, numa pausa do vozerio. "Não vou lutar com
vocês de novo."
Eles se consultaram
entre si e o deixaram levantar-se.
A voz de um homem
mais velho começou a interrogá-lo, e Núnez se viu tentando explicar o grande
mundo do qual ele tinha caído, e o céu, as montanhas, a visão e outras tantas
maravilhas, àqueles anciãos sentados no escuro na Terra dos Cegos.
E eles não
acreditavam em nada e não entendiam nada do que ele lhes dizia, fato bem fora
das expectativas de Núnez. Há catorze gerações essas pessoas eram cegas e
separadas do mundo da visão; os nomes de todas as coisas referentes à visão
tinham desaparecido e mudado; a história do mundo lá fora tinha desaparecido e
mudado para uma história infantil; e eles tinham deixado de se preocupar com qualquer
coisa para lá das encostas rochosas de seu muro circundante. Cegos de gênio
tinham surgido entre eles e questionado os restos de crença e tradição que o povo
trazia consigo de seus dias de visão, e haviam posto de lado todas essas coisas
como fantasias ociosas e as substituído com explicações novas e mais críveis.
Muita coisa de sua imaginação tinha murchado junto com seus olhos; e eles criaram
para si mesmos novas imaginações com seus ouvidos e dedos cada vez mais
sensíveis. Lentamente Núnez se deu conta disso; que sua expectativa de admiração
e reverência em relação à sua origem e seus dons não iria frutificar; e que
depois que sua precária tentativa de lhes explicar a visão tinha sido posta de lado
como a versão confusa de um ser recém-criado descrevendo as maravilhas de suas
sensações incoerentes, ele se conformou, um tanto espantado, em ouvir a instrução
deles. E o mais velho dos cegos explicou a ele a vida, a filosofia e a religião,
como o mundo (querendo dizer seu vale) tinha sido inicialmente um vazio oco nas
rochas, e então surgiram, primeiro, coisas inanimadas sem o dom do tato, e depois
as lhamas e umas poucas outras criaturas que tinham pouco sentido das coisas, e
então os seres humanos, e enfim os anjos, que se podiam ouvir cantando e se
agitando, mas os quais ninguém podia tocar, história que muito espantou Núnez, até
que ele pensou nos pássaros.
O ancião continuou
contando a Núnez como o tempo tinha sido dividido entre o
quente e o frio, que
são os equivalentes dos cegos ao dia e à noite, e como era bom dormir no quente
e trabalhar no frio, de modo que agora, não fosse por sua chegada, toda a
cidade dos cegos estaria dormindo. Ele disse que Núñez devia ter sido criado especialmente
para aprender e servir a sabedoria que eles tinham adquirido e que, apesar de
toda a sua incoerência mental e todo o seu comportamento estabanado ele
precisava ter coragem, e fazer o melhor para aprender, e diante disso toda a multidão
na porta assentiu de modo encoraja-dor. Ele disse que a noite — pois os cegos
chamam noite a seu dia — estava agora muito avançada, de modo que todos deviam
ir para casa dormir. Perguntou a Núnez se este sabia dormir e Núnez disse que
sabia, mas que antes de dormir ele queria comer.
Trouxeram-lhe comida —
leite de lhama numa cuia, e pão duro salgado — e o
levaram a um lugar
solitário de modo que eles não o ouvissem comer, e depois ele deveria dormir
até que o frio da noite na montanha os acordasse para começar seu dia de novo.
Mas Núñez não dormiu de jeito nenhum.
Em vez disso, ele
sentou no lugar em que o deixaram, descansando os membros e fazendo girar e
girar na mente as circunstâncias inesperadas de sua chegada.
De vez em quando ele
ria, às vezes divertido, às vezes indignado.
"Mente não
formada!", disse. 'Ainda não formou os sentidos! Mal sabem que estão insultando
o seu rei e mestre enviado do céu. Vejo que preciso trazê-los à razão.
Deixem-me pensar —
deixem-me pensar."
Ainda estava pensando
quando o sol se pôs.
Núñez tinha um olho
para todas as coisas bonitas, e lhe pareceu que o fulgor
brilhante sobre os
campos nevados e as geleiras em torno do vale era a coisa mais bela que ele
jamais tinha visto. Seus olhos foram daquela glória inacessível para a aldeia e
para os campos irrigados, que afundavam rapidamente no lusco-fusco, e de repente
uma onda de emoção o tomou, e ele deu graças a Deus, do fundo do coração, por
ter sido dado a ele o dom da visão.
Ouviu uma voz
chamando por ele a partir da aldeia: "Olá, aí, Bogotá! Venha cá!".
Com isso ele
interrompeu o sorriso. Ele iria mostrar a essa gente, de uma vez por todas, o
que a visão pode fazer por um ser humano. Iriam procurá-lo, mas não o achariam.
"Não se mova,
Bogotá", disse a voz.
Ele riu sem fazer
barulho e deu dois passos sorrateiros para fora do caminho.
"Não pise na
grama, Bogotá; isso é proibido."
Núnez não tinha
ouvido o ruído que ele próprio fizera. Parou, espantado.
O dono da voz veio
correndo ao caminho pintalgado em direção de Núnez.
Este voltou para o
caminho. “Aqui estou", disse.
"Por que você
não veio quando o chamei?", disse o cego. "Você precisa ser levado como
uma criança? Não pode ouvir o caminho enquanto anda?"
Núñez riu.
"Posso vê-lo", disse.
"Não existe a
palavra ver", disse o cego, após uma pausa. "Pare com essa loucura e siga
o som de meus pés."
Núñez o seguiu, um
tanto aborrecido.
"Minha vez vai
chegar", disse.
"Você vai
aprender", respondeu o cego. "Há muita coisa para aprender no
mundo."
"Nunca lhe
disseram 'Em terra de cego, quem tem um olho é rei'?"
"O que é
cego?", perguntou o cego, despreocupadamente, por cima do ombro.
Quatro dias se
passaram, e o quinto dia encontrou o Rei dos Cegos ainda incógnito, como um
estranho desajeitado e inútil entre seus súditos.
Núñez descobriu que
era muito mais difícil se proclamar rei do que tinha suposto, e, no intervalo,
enquanto meditava em seu golpe de Estado, ele fez o que lhe diziam e aprendeu
as maneiras e costumes da Terra dos Cegos. Achou que trabalhar e andar durante
a noite era uma coisa particularmente exaustiva, e decidiu que essa era a primeira
coisa que iria mudar.
Essa gente levava uma
vida simples, laboriosa, com todos os elementos de virtude e felicidade como
essas coisas podem ser entendidas pelos seres humanos.
Trabalhavam, mas não
de modo opressivo; tinham comida e roupa suficientes para suas necessidades;
tinham dias e estações de descanso; tocavam música e dançavam muito, havia amor
entre eles, e crianças pequenas.
Era maravilhoso ver a
confiança e a precisão com que eles caminhavam em seu mundo bem ordenado. Tudo
tinha sido feito para se adequar às suas necessidades;
cada um dos caminhos
que se irradiavam na área do vale tinha um ângulo constante em relação aos
outros, e cada um deles era distinguido por uma cunha especial sobre sua curva;
tinham sido limpos e arrumados, havia muito tempo, todos os obstáculos e
irregularidades do caminho ou da pradaria; todos os seus métodos e procedimentos
se originavam naturalmente de suas necessidades específicas. Seus sentidos
tinham se tornado maravilhosamente agudos; podiam ouvir e avaliar o menor gesto
de um ser humano a uma dezena de passos — podiam ouvir até a batida de seu
coração. A entonação havia muito tinha substituído as expressões do rosto, e os
toques pelo tato tinham substituído os gestos indicativos; seu trabalho com
enxada, pá e ancinho era tão fácil e confiante como a jardinagem pode ser. Seu sentido
do olfato era extraordinariamente agudo; podiam distinguir diferenças individuais
tão rapidamente quanto um cachorro, e eles faziam o manejo das lhamas, que
viviam entre as rochas lá em cima e vinham ao muro buscar comida e abrigo, com
facilidade e confiança. Foi somente quando, no fim, Núñez procurou se
afirmar perante eles,
que descobriu quão fáceis e confiantes eram os movimentos deles.
Ele se rebelou
somente depois de tentar persuadi-los.
Tentou no início, em
várias ocasiões, explicar-lhes a visão. "Escutem-me", disse. "Há
coisas em mim que vocês não entendem."
Umas vezes um ou dois
deles o atendiam; sentavam com os rostos abaixados e os ouvidos voltados
inteligentemente na direção de Núñez, e ele fez o melhor que pôde para lhes
explicar o que era ver. Entre seus ouvintes havia uma garota, com pálpebras
menos vermelhas e afundadas do que os outros, de modo que quase se podia
imaginar que ela estava escondendo os olhos, e a qual ele esperava
especialmente
convencer. Ele falou das belezas da visão, de olhar as montanhas, do céu e do
nascer do sol, e eles o ouviam com incredulidade divertida que, depois, se tornou
condenatória. Disseram-lhe que não havia montanhas de modo nenhum, mas que o
fim das rochas onde as lhamas pastavam era na verdade o fim do mundo, dali partia
um teto cavernoso do universo, de onde vinham o orvalho e as avalanches; e quando
ele se manteve firme na afirmação de que o mundo não tinha fim nem teto, ao
contrário do que eles supunham, eles disseram que seus pensamentos eram pecaminosos.
Até o ponto em que ele podia descrever o céu, as nuvens e as estrelas para
eles, tudo isso lhes parecia um vácuo monstruoso, um terrível vazio no lugar do
teto liso sobre as coisas no qual acreditavam — era um artigo de fé entre eles
que o teto da caverna era plenamente liso ao toque. Núñez percebeu que de algum
modo ele os chocava, desistiu de vez desse assunto, e tentou mostrar-lhes o valor
prático da visão. Uma manhã viu Pedro no caminho chamado Dezessete, vindo para
as casas centrais, mas ainda longe demais para a audição ou o olfato, e lhes contou
isso. "Em pouco tempo", previu, "Pedro estará aqui." Um
velho notou que Pedro não tinha nada para fazer no caminho Dezessete e então,
como que para confirmar isso, Pedro, quando chegou mais perto, virou e caminhou
transversalmente para o caminho Dez, e então caminhou com passos ágeis rumo ao muro
externo. Eles ridicularizaram Núñez quando Pedro não chegou, e depois, quando
Núfiez fez perguntas a Pedro para esclarecer o assunto, Pedro negou e o enfrentou,
e daí em diante se tornou hostil a Núñez.
Então ele os induziu
a deixá-lo subir bem longe pelas encostas da pradaria, rumo ao muro, com um
companheiro que concordasse, e para ele prometeu descrever tudo que acontecia
entre as casas. Ele notou certas idas e vindas, mas as coisas que realmente
pareciam ter significado para aquela gente aconteciam dentro ou atrás das casas
sem janelas — as únicas coisas de que tomavam nota para testá-lo — e dessas
coisas ele não podia ver ou dizer nada, e foi após o fracasso dessa tentativa, e
da ridicularização que eles não conseguiram reprimir, que ele recorreu à força.
Pensou em segurar uma
pá e de repente derrubar um ou dois ao chão, e assim em combate leal mostrar a
vantagem dos olhos. Chegou, até, com essa resolução, a segurar sua pá, e então
descobriu algo de novo a seu respeito, que era impossível para ele agredir um
cego a sangue-frio.
Hesitou e descobriu
que todos haviam percebido que ele agarrara a pá. Eles ficaram em alerta, com
suas cabeças de lado, e ouvidos inclinados rumo a ele, para detectar o que ele
iria fazer em seguida.
"Abaixe essa
pá", disse um deles, e ele sentiu uma espécie de horror indizível.
Tendeu a obedecer.
Então empurrou um dos
cegos contra a parede de uma casa, e fugiu para fora da aldeia. Foi por sobre
uma de suas pradarias, deixando um rastro de grama esmagada por seus pés, e
depois sentou ao lado de um dos caminhos deles. Sentiu algo da expectativa que
acomete todos os homens no começo de uma luta, mas uma perplexidade maior.
Começou a perceber que não se pode nem lutar com ânimo
contra criaturas que
estão numa situação mental diferente da sua. Ao longe, viu um
grupo de homens
carregando pás e cacetes, saindo da rua de casas, e avançando
em filas que se
espalhavam pelos vários caminhos na direção dele. Avançavam
devagar, falando
freqüentemente um ao outro, e sempre e sempre toda a fileira
parava, cheirava o ar
e escutava.
Na primeira vez em
que fizeram isso, Núñez riu. Mas depois já não riu.
Um deles percebeu a
trilha de Núnez na grama do prado, e veio inclinando-se e sentindo o caminho ao
longo da trilha.
Durante cinco minutos
Núñez observou o lento espalhamento da fileira de cegos, e então sua vaga
disposição de fazer alguma coisa se tornou frenética. Levantou-se, deu um ou
dois passos em direção ao muro circular, virou-se e voltou um pouco atrás. Ali
estavam todos eles parados, formando uma meia-lua, silenciosos e procurando
escutar.
Ele também ficou
parado, agarrando firmemente sua pá com as duas mãos. Devia atacá-los?
A pulsação nos seus
ouvidos corria ao ritmo de "Em terra de cego, quem tem um olho é
rei!".
Devia atacá-los?
Olhou para trás rumo
ao muro alto e inescalável — inescalável por causa de seu cimento liso, mas
também perfurado com muitas portinholas, e olhou para a linha que se aproximava
de seus perseguidores. Atrás desses, agora vinham outros da rua das casas.
Devia atacá-los?
"Bogotá!",
um deles chamou. "Bogotá, onde está você?"
Ele agarrou sua pá
ainda mais firmemente e avançou pela pradaria rumo ao lugar das habitações, e
diretamente, enquanto andava, eles convergiram em torno dele.
"Vou golpeá-los
se me tocarem", jurou. "Por Deus, vou fazer isso. Vou
golpeá-los."
Berrou: "Olhem
aqui, vou fazer o que quiser neste vale. Vocês estão ouvindo? Vou fazer o que
quero e ir aonde quero".
Eles estavam
rapidamente se movendo rumo a ele, tateando, mas se movendo
rapidamente. Era como
brincar de cabra-cega, com todo mundo cego menos um.
"Peguem-no!",
gritou um deles. Núnez se viu no arco de uma curva solta de
perseguidores. Sentiu
subitamente que precisava entrar resolutamente em ação.
"Vocês não
entendem", gritou numa voz que pretendia ser imperiosa e resoluta, e que
foi fraca. "Vocês são cegos, e eu posso ver. Deixem-me em paz!"
"Bogotá! Largue
essa pá, e saia da grama!"
Essa última ordem,
grotesca com sua familiaridade civilizada, produziu um acesso de raiva.
"Vou
machucá-los", disse Núnez, soluçando de emoção. "Por Deus, vou
machucá-los.
Deixem-me em
paz!"
Começou a correr, sem
saber claramente para onde correr. Correu para longe do cego mais próximo, pois
era um horror golpeá-lo. Parou, então fez uma tentativa para escapar das
fileiras deles que o cercavam. Rumou para onde havia um grande vazio, e os
homens de cada lado, com uma rápida percepção da aproximação de seus passos,
juntaram-se uns aos outros, preenchendo o vazio. Núñez pulou para a frente, e
então viu que iria ser capturado e golpeou alguém com a pá. Núnez sentiu o macio
choque de mão e braço, e o homem estava caído com um grito de dor, e Núñez
tinha conseguido passar!
Tinha conseguido
passar! E então estava de novo perto da rua das casas, e cegos, girando pás e
estacas, estavam correndo com uma espécie de rapidez calculada para lá e para
cá.
Núñez ouviu passos
atrás dele ainda a tempo, e descobriu um homem alto correndo para a frente e
procurando, pelos sons, golpear Núñez. Este perdeu a paciência, atirou a pá que
caiu a uma jarda do seu antagonista, virou-se e fugiu, berrando alto enquanto
fintava outro.
Estava tomado pelo
pânico. Correu furiosamente para lá e para cá, fintando com a pá quando não
havia nenhuma necessidade de fintar, e, em sua ansiedade para enxergar de todos
os lados de uma vez só, acabou tropeçando. Por um momento ficou caído e eles
ouviram sua queda. Longe, no muro circular, uma portinhola parecia o Paraíso, e
ele correu selvagemente rumo a ela. Nem olhou seus perseguidores até que chegou
à portinhola, tropeçou em meio à ponte, engatinhouum pouco pelas rochas, para a
surpresa e desgosto de uma jovem lha-ma que saiu pulando de sua visão, e deitou
resfolegando, sem ar.
E assim acabou o seu
golpe de Estado.
Ficou fora do muro do
vale dos cegos duas noites e dois dias, sem comida ou
abrigo, e meditou
sobre o inesperado. Durante essas meditações ele repetia muito freqüentemente,
e sempre com um tom cada vez mais profundo de derrisão, o provérbio que
explodira: "Em terra de cego, quem tem um olho é rei. Pensou sobretudo em
maneiras de lutar e conquistar esse povo, e se tornou claro para ele que não
havia uma maneira factível. Não tinha armas, e agora seria difícil obtê-las.
A doença da
civilização o tomara mesmo em Bogotá, e ele não podia achar meios em si mesmo
de descer a ponto de assassinar um cego. É claro que, se fizesse isso, poderia
ditar os termos sob ameaça de assassiná-los a todos. Mas, mais cedo ou mais
tarde, precisava dormir!...
Também tentou achar
comida entre os pinheiros, sentir conforto sob ramos de
pinhas enquanto o
sereno caía à noite, e — com menos confiança — capturar uma
lhama por artimanha
para tentar matá-la — talvez batendo nela com uma pedra — e assim, talvez,
comer um pouco dela. Mas a lhama duvidou dele e o encarou com desconfiados
olhos castanhos, e cuspiu quando ele chegou perto. Ele teve medo e acessos de
tremores no segundo dia. Finalmente rastejou de volta para o muro da Terra dos
Cegos e tentou entrar num acordo. Rastejou ao longo do curso d'água, gritando,
até que dois cegos vieram ao portão e falaram com ele.
"Eu
enlouqueci", disse. "Mas eu tinha acabado de ser criado."
Eles disseram que
isso era melhor.
Ele lhes contou que
estava mais sábio agora, e se arrependia de tudo que tinha
feito.
Então chorou sem
querer, pois estava agora muito fraco e doente, e eles tomaram isso como um bom
sinal.
Perguntaram se ele
ainda pensava que podia "ver".
"Não",
disse. "Isso era loucura. A palavra não quer dizer nada — menos do que
nada!"
Perguntaram a ele o
que havia acima.
"Cerca de cem
vezes a altura de um homem há um teto sobre o mundo — de rocha — e liso, muito
liso...." Irrompeu de novo em lágrimas histéricas. “Antes que vocês me
perguntem mais coisas, me dêem comida ou vou morrer."
Ficou esperando duros
castigos, mas esse povo cego era capaz de tolerância.
Encararam sua
rebelião como mais uma prova da idiotia e inferioridade gerais dele, e, depois
que o chicotearam, o indicaram para fazer o trabalho mais simples e mais pesado
que tinham para alguém fazer, e ele, não vendo outro modo de vida, fez submisso
o que lhe disseram para fazer.
Ficou doente uns
dias, e eles cuidaram dele bondosamente. Isso fez se intensificar sua
submissão. Mas eles insistiram em que ele permanecesse no escuro, e essa era uma
grande miséria. E filósofos cegos vinham e falavam a ele da pecaminosa leviandade
de sua mente, e o repreenderam de tal maneira por suas dúvidas sobre a tampa de
rocha que cobria sua panela cósmica que ele quase duvidou se na verdade não era
vítima de alucinações ao não ver a tampa lá em cima.
Então Núñez se tornou
um cidadão da Terra dos Cegos, e esse povo deixou de ser um povo generalizado;
eles se tornaram individualidades familiares para ele, enquanto o mundo além
das montanhas se tornou cada vez mais remoto e irreal.
Havia Yacob, seu
patrão, homem bondoso quando não estava aborrecido; havia Pedro, sobrinho de
Yacob, e havia Medina-saroté, a filha caçula de Yacob. Ela era pouco estimada
no mundo dos cegos, porque tinha um rosto anguloso e não aquela maciez
satisfatória, vítrea, que é o ideal, para o cego, da beleza feminina; mas Núñez
achou-a linda desde o início, e depois a coisa mais linda neste mundo. As pálpebras
fechadas dela não eram vermelhas e afundadas como era comum no vale, mas
parecia que podiam se abrir de novo a qualquer momento, e ela tinha longos
cílios, o que levava os outros a julgarem seu rosto gravemente desfigurado. E sua
voz era forte, e não satisfazia a audição aguda dos jovens do vale. Assim, não tinha
amante.
Chegou a hora em que
Núñez pensou que, se pudesse conquistá-la, ele poderia resignar-se a viver no
vale pelo restante de seus dias.
Ele a observava;
buscava oportunidades de lhe prestar pequenos serviços, e depois percebeu que
ela o observava. Uma vez, numa reunião num dia de descanso, eles sentaram lado
a lado à tênue luz das estrelas, e a música era doce a seus ouvidos.
A mão dele pousou
sobre a dela e ele ousou apertá-la. E então, ternamente, ela fezpressão de
volta. E um dia, quando tomavam sua refeição no escuro, ele sentiu a mão dela
procurando suavemente por ele e, como por acaso, o fogo crepitou e ele viu a
ternura do rosto dela.
Ele tentou falar com
ela.
Foi procurá-la um dia
quando ela estava sentada ao luar fiando. A lua a tornava uma coisa de prata e
de mistério. Ele sentou aos pés dela e disse que a amava, e disse quão linda
ela parecia para ele. Tinha a voz de um amante, falava com uma terna reverência
que chegava perto da adoração, e ela nunca tinha sido antes tocada pela adoração.
Ela não deu a ele nenhuma resposta definida, mas ficou claro que suaspalavras
lhe agradavam.
Depois disso ele
falava com ela sempre que tinha oportunidade. O vale se tornou omundo para ele,
e o mundo para além das montanhas, em que os homens viviam à luz do sol,
parecia não mais do que um conto de fadas que ele iria um dia sussurrar aos
ouvidos dela. Com muito cuidado, experimentando de várias formas, ele timidamente
falou a ela da visão.
A visão parecia a ela
a mais poética das fantasias, e ela ouvia a descrição dele das estrelas e das
montanhas e da própria beleza dela iluminada de branco como se fosse uma
indulgência pecaminosa. Ela não acreditava, podia entender apenas parte do que
ele dizia, mas estava misteriosamente encantada e pareceu a ele que ela entendia
tudo.
O amor dele perdeu a
adoração imobilizadora inicial e cresceu em coragem. Depois ele decidiu pedi-la
em casamento a Yacob e aos anciãos, mas ela ficou com medo e foi retardando as
coisas. E foi uma de suas irmãs mais velhas a primeira a contar a Yacob que
Medina-saroté e Núnez estavam apaixonados um pelo outro.
Houve desde o início
oposição muito grande ao casamento de Núnez e Medinasaroté; não tanto porque a
valorizavam, mas porque tinham Núnez como um ser à parte, um idiota,
incompetente, uma coisa abaixo do nível permissível para um ser humano. As
irmãs dela se opuseram brutalmente ao casamento, como se este fosse deixá-las a
todas mal-afamadas; e o velho Yacob, embora tivesse formado uma espécie de
afeição por esse servo desajeitado e obediente, sacudiu a cabeça e disse que
não podia ser. Os homens jovens ficaram todos irritados com a idéia de corromper
a raça, e um foi tão longe na sua indignação a ponto de xingar e agredir Núñez.
Este reagiu à agressão. Então, pela primeira vez, descobriu uma vantagem em
poder ver, mesmo ao lusco-fusco, e depois que essa luta terminou, ninguém mais se
dispôs a levantar a mão contra ele. Mas ainda achavam impossível o casamento.
O velho Yacob tinha
uma certa ternura por sua filha pequena, e ficou abalado ao tê-la chorando em
seu ombro.
"Você percebe,
querida, ele é um idiota. Sofre de alucinações; não pode fazer nada direito."
"Sei disso", chorou Medina-saroté. "Mas ele está melhor do que
já foi. Está se tornando melhor. E ele é forte, querido papai, e bom — mais
forte e mais bondoso do que qualquer outro homem no mundo. E me ama, e, papai,
eu o amo." O velho Yacob ficou muito preocupado ao descobrir que ela
estava inconsolável e, além disso — o que o deixava ainda mais preocupado —,
ele gostava de Núñez por muitas razões. Então compareceu à câmara do conselho
com os outros anciãos, observou o rumo da conversa, e disse, no momento
adequado:
"Ele está melhor
do que já foi. Muito provavelmente um dia vamos julgá-lo tão bom
quanto nós
próprios".
Então um dos anciãos,
depois de pensar profundamente, teve uma idéia. Ele era o grande médico entre
aquelas pessoas, seu curandeiro, tinha uma mente muito filosófica e inventiva,
e a idéia de curar Núñez de suas peculiaridades o atraía. Um dia, quando Yacob
estava presente, ele voltou ao tópico de Núñez.
"Examinei
Bogotá", disse, "e o caso está mais claro para mim. Penso que muito
provavelmente ele
pode ser curado."
"Isso é o que
sempre esperei", disse o velho Yacob.
"O cérebro dele
é que é afetado", disse o médico cego.
Os anciãos fizeram um
murmúrio de assentimento.
"Agora, o que o
afeta?"
"Ah!",
disse o velho Yacob.
"Isto",
disse o médico, respondendo à sua própria pergunta. "Essas estranhas
coisas que chamamos os olhos, e que existem para fazer uma depressão macia e agradável
no rosto, são doentes, no caso de Bogotá, de uma maneira tal que afeta seu
cérebro. São excessivamente estendidas, ele tem cílios e suas pálpebras se movem,
e conseqüentemente seu cérebro está num estado de constante irritação e distração."
"Sim?",
disse o velho Yacob. "Sim?"
"E acho que
posso dizer com razoável certeza que, para curá-lo completamente, tudo que
precisamos fazer é uma cirurgia bem fácil — ou seja, extrair esses corpos irritantes."
"E então ele
ficará são?"
"E então ele
ficará perfeitamente são e será um cidadão bem respeitável."
"Graças aos céus
pela ciência!", disse o velho Yacob, e correu para contar a Núñez suas
felizes esperanças.
Mas o modo como Núnez
recebeu a boa-nova surpreendeu Yacob como sendo frio e decepcionante.
"Poderia se
pensar", disse Yacob, "pelo tom que você fala, que você não se
incomoda com minha
filha."
Foi Medina-saroté
quem convenceu Núnez a enfrentar os cirurgiões cegos.
"Você não quer
que eu", disse ele, "perca meu dom da visão?"
Ela sacudiu a cabeça.
"Meu mundo é a
visão."
Ela baixou a cabeça.
"Há as coisas
belas, as pequenas coisas belas — as flores, os liquens entre as
rochas, a leveza e a
maciez numa pele, o céu longínquo com o passar das nuvens, os pores-do-sol e as
estrelas. E tem você. Para ver apenas você já é bom ter a visão, para ver seu
rosto doce, sereno, seus lábios bondosos, suas queridas e belas mãos
entrecruzadas... São esses olhos meus que você conquistou, esses olhos que me
mantêm ligado a você, são esses olhos que esses idiotas querem tirar. Em vez disso,
preciso tocar você, ouvir você, e não devo ver você nunca mais. Preciso ficar sob
esse teto de rocha, pedra e escuridão, esse horrível teto sob o qual a sua imaginação
definha... Não, você não me obrigaria a fazer isso?"
Uma dúvida
desagradável tinha surgido dentro dele. Parou e deixou no ar a
pergunta.
"Eu
desejo", disse ela, "às vezes —" Ela parou de falar.
"Sim",
disse ele, um pouco apreensivo.
"Desejo às vezes
— que você não fale assim."
'Assim, como?"
"Sei que é
bonito — é a sua imaginação. Eu amo a sua imaginação, mas agora —"Ele
esfriou. "Agora?", disse, com voz débil.
Ela sentou e ficou
quieta e calada.
"Você quer dizer
— você acha — que eu ficaria melhor, melhor talvez —"
Ele estava percebendo
as coisas bastante rapidamente. Sentiu raiva, de verdade, raiva, diante do duro
curso do destino, mas também simpatia pela falta de compreensão dela — uma
simpatia próxima da piedade.
"Querida",
disse, e ele podia agora ver, pela palidez dela, quão intensamente o
espírito dela
pressionava contra as coisas que ela não podia dizer. Ele a rodeou com os
braços, beijou-lhe a orelha, e eles permaneceram sentados um tempo em silêncio.
"E se eu
consentisse nisso?", disse ele afinal, numa voz muito suave.
Ela o apertou em seus
braços, chorando muito. "Oh, se você consentisse", soluçou, "se
você apenas consentisse!"
Durante a semana
anterior à operação que deveria erguê-lo da servidão e da
inferioridade para o
nível de um cidadão cego, Núñez não dormiu nem um pouco, e durante todas as
horas quentes de sol, enquanto os demais ressonavam felizes, ele ficava sentado
meditando ou andava sem rumo, tentando levar sua mente a suportar o dilema.
Tinha dado a resposta, tinha dado o consentimento, e ainda assim não tinha
certeza. E no fim, o horário de trabalho tinha acabado, o sol nasceu em esplendor
por sobre as cristas douradas, e o último dia de visão começou para ele.
Teve uns minutos com
Medina-saroté antes que ela partisse para dormir.
“Amanhã", disse
ele, "não verei mais."
"Oh, querido do
meu coração!", ela respondeu, e apertou as mãos dele com toda a força.
"Machucarão você
só um pouco", ela disse; "e você vai passar por essa dor — você vai
passar por isso, querido amor, por mim... Querido, se o coração e a vida de uma
mulher podem fazer isso, vou recompensar você. Queridíssimo, que-ridíssimo,
você, com sua voz terna, vou recompensá-lo."
Ele ficou inundado de
piedade por ele mesmo e por ela.
Segurou-a nos braços,
e apertou os lábios contra os dela, e olhou o doce rosto dela pela última vez.
"Adeus!", sussurrou diante dessa querida visão, "adeus!"
E então, em silêncio,
ele a deixou.
Ela pôde ouvir os
lentos passos dele à saída, e algo no ritmo dos passos a levou a um choro
apaixonado.
Ele tinha decidido
firmemente ir a um lugar solitário, onde a pradaria era bonita, com narcisos
brancos, e ali ficar até que chegasse a hora de seu sacrifício, mas enquanto andava
ergueu os olhos e viu a manhã, a manhã como um anjo em armadura dourada,
descendo pelos picos...
Pareceu-lhe que,
diante desse esplendor, ele, e esse mundo cego no vale, e seu amor, e tudo, não
eram mais do que um poço de pecado. Não virou para o lado que tinha pretendido,
mas seguiu em frente, e passou pelo muro circular e saiu para as rochas, e seus
olhos estavam sempre vendo o gelo e a neve iluminados pelo sol.
Viu sua beleza
infinita, e sua imaginação cresceu a partir do gelo e da neve para as coisas lá
longe, às quais agora iria renunciar para sempre.
Pensou naquele mundo
grande e livre de onde tinha partido, o mundo que era o seu próprio mundo, e
teve uma visão das encostas além dali, da distância atrás da distância, com
Bogotá, lugar de beleza de multidão vibrante, glória durante o dia, mistério
luminoso à noite, lugar de palácios, fontes, estátuas e casas brancas, belas a
meia distância. Pensou como, em um dia ou pouco mais, poderia descer, atravessando
passos, chegando cada vez mais perto de suas ruas e ruelas movimentadas. Pensou
na viagem pelo rio, dia após dia, da grande Bogotá para o mundo ainda mais
vasto lá fora, por entre vilas e aldeias, floresta e lugares desertos, o rio
correndo dia após dia, até que suas margens se afastavam e os grandes vapores
surgiam brilhantes, e tinha chegado ao mar — o mar sem limites, com suas mil
ilhas, seus milhares de ilhas, e seus navios vistos vagamente ao longo em suas incessantes
jornadas em torno daquele mundo maior. E lá, não limitado pelas montanhas, se
via o céu — o céu não como um disco como se via aqui, mas como um arco de azul
imenso, uma profundeza das profundezas em que as estrelas em rotação estavam
flutuando... Seus olhos examinaram a grande cortina de montanhas investigando-as
ansiosamente.
Por exemplo, se
alguém andasse assim, subindo aquele desfiladeiro e rumo àquela canaleta lá,
então alguém poderia subir alto entre aqueles pinheiros-anões que corriam em
volta numa espécie de proteção e se erguiam ainda mais alto quando a proteção
passava acima da garganta. E então? Aquele talude poderia ser superado.
Então talvez pudesse
ser achada uma via de escalada que o levasse ao alto do
precipício que vinha
depois da neve, e se essa canaleta falhasse, então outra mais a leste poderia
servir melhor. E então? Então estaria sobre a neve iluminada cor de âmbar ali,
e estaria a meio caminho rumo à crista daqueles belos lugares desolados.
Ele olhou para trás,
para a aldeia, e então se virou e a observou de modo
abrangente.
Pensou em
Medina-saroté, e ela tinha se tornado pequena e remota.
Virou-se de novo para
a parede da montanha, pela qual rumo abaixo o dia claro tinha chegado para ele.
Então, muito
circunspeto, começou a escalar.
Quando chegou o
pôr-do-sol, ele não estava mais escalando, mas estava longe e muito alto. Tinha
estado mais acima, mas ainda estava num lugar muito alto. As roupas estavam
rasgadas, os membros estavam manchados de sangue, estava machucado em muitos
lugares, mas ele se sentia como se estivesse à vontade e havia um sorriso em
seu rosto.
De seu lugar de
repouso o vale parecia como se estivesse num poço e quase a uma milha de
distância. Já estava difícil de enxergar, com a névoa e a sombra, embora os
picos de montanhas em torno dele fossem objetos de luz e fogo. Os picos de montanhas
em torno dele eram objetos de luz e fogo, e os pequenos detalhes das rochas
próximas estavam inundados de beleza sutil — um veio de mineral verde furando o
cinza, a luminosidade de cristais aqui e ali, um pequeno líquen laranja de delicada
beleza bem perto de seu rosto. Havia sombras muito misteriosas na garganta, o
azul se aprofundando para o púrpura, e o púrpura para uma escuridão luminosa, e
lá em cima estava a ilimitada vastidão do céu. Mas ele não mais prestava
atenção nessas coisas; ficou bastante quieto por ali, sorrindo como se estivesse
satisfeito simplesmente por ter fugido do vale dos cegos, no qual tinha pensado
ser rei. O brilho do pôr-do-sol passou, a noite chegou, e ele ainda estava quieto,
deitado, em paz e contente sob as estrelas frias e claras.
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